Texto Reproduzido do sítio www.vermelho.org.br
Por Pedro Estevam Serrano*, em Folha de S.Paulo
Superada a fase inicial da operação no Complexo do Alemão, no Rio, já é possível traçar análises menos apaixonadas sobre as políticas de combate à violência no país.
Coaduno com a opinião daqueles que veem nos esforços de instalação de Unidades de Polícia Pacificadora uma vitória, mas restrita a apenas uma das inúmeras batalhas que devemos travar contra as organizações criminosas forjadas e consolidadas em décadas de inoperância, desatenção e descaso do poder público com as periferias urbanas.
Já no dia 29/11, esta Folha relatava a avaliação de estudiosos sobre a importância de o Estado se fazer presente de forma permanente nos locais ocupados, sob pena de repetir operações ineficazes de outrora.
Indubitavelmente, a guerra contra a criminalidade se vence com a presença estatal a garantir os direitos fundamentais das pessoas.No entanto, chegou a hora de instigarmos um debate mais responsável e abrangente.
É pertinente tocar numa ferida que avalio indissociável do real enfrentamento, com transparência, das raízes da violência: se não quisermos construir mais uma vitória de Pirro, teremos que encontrar as condições adequadas para adotar legislação que comporte a descriminalização do uso recreativo das drogas -como já defendeu o governador do Rio, Sérgio Cabral.
Mais: cabe refletirmos, igualmente, sobre a legalização e regulação, pelo Estado, do comércio de entorpecentes. Ignorar que tais temas são delicados seria comportar-se da mesma maneira como os que se negam a debatê-los.
Longe de querer provocar falsas polêmicas, devemos afastar o furor e as paixões e promover discussão racional e jurídica sobre essas questões, que, invariavelmente, varremos para debaixo do tapete.
Há fortes razões emocionais para sucumbir à opção fácil de nos esquivarmos dessa reflexão urgente, afinal, as ideias geralmente associadas ao uso de drogas estão sedimentadas num oceano que mistura aspectos médicos, tradições jurídicas, moralismos e preconceitos.
O combate à violência, contudo, será tão mais eficiente quanto mais conseguirmos livrar a esfera de ação individual da intromissão excessiva do coletivo, em atenção ao direito de liberdade expresso no artigo 5º de nossa Constituição.
Em essência, ninguém deve ser proibido de adotar um comportamento sem que tal proibição tenha por fundamento a proteção de direito de terceiros. Ao Estado cabe informar à pessoa, por meio de ações educativas, o mal à saúde que o uso de substâncias entorpecentes para fins recreativos ocasiona, mas a decisão final do que fazer com o próprio corpo cabe à própria pessoa.
O que deve ser punido criminalmente são as condutas associadas ao uso de drogas que vulnerem real ou potencialmente direitos de terceiros, como dirigir sob seu efeito, fornecer tais substâncias a menores ou fora das condições administrativas estabelecidas em lei etc.
Descriminalizar o uso e disciplinar o comércio, com a fixação, inclusive, de altos impostos para financiar os custos de tratamento decorrentes do consumo, revela-se estratégia complementar às operações policiais.
Isso porque devolve ao indivíduo sua própria e inalienável gestão corporal e porque retira das organizações criminosas uma de suas fontes de financiamento, a comercialização dos psicotrópicos, relegando a questão da adição aos planos familiar, pedagógico e de saúde, sem o entorno de violência que a criminalização propicia.
Teremos coragem para entrar nesse debate?
*Pedro Estevam Serrano é mestre e doutor em direito pela PUC-SP, é advogado especialista em direito público e professor de direito constitucional da PUC-SP.
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