quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

2011: os EUA e o Estado do Mundo

texto reproduzido do sítio opera mundi
Depois de metade do seu mandato, alguma paralisia, uma retumbante derrota eleitoral (nas eleições de meio de mandato em 2010) e algumas vitórias – como a nova legislação de seguro de assistência médica – já podemos fazer uma mais detalhada análise do chamado “fenômeno Obama”. As crises internacionais mantiveram-se praticamente as mesmas – Irã, Coréia e o drama da Palestina.
A “novidade” Obama
A tão esperada “nova abordagem” das relações internacionais, anunciada durante a campanha eleitoral, na verdade não aconteceu. Deu-se, isso sim, a instauração de um clima mais aberto, mais voltado para o entendimento em alguns campos, em particular entre os grandes centros de poder, como o grande acordo com a Federação Russa em 2010. O clima de enfrentamento e de desconfiança, típico da Era Bush, foi suplantado pelo discurso mais aberto e disponível à negociação de Obama, em especial o brilhante discurso na Universidade do Cairo em 4 de junho de 2009. A visita de Dimitri Medvedev, presidente da Rússia – com a inusitada ida com Obama a uma típica loja de hot-dogs – foi também um bom sinal, apesar da extrema direita americana – Tea Party & Sara Palin et alii – terem ficados possessos e ainda mais raivosos.
Hoje, desde o fim da velha ordem mundial (a Guerra Fria, de 1945-1991), a possibilidade de um choque cataclísmico entre grandes potências é a mais baixa de toda história. Um razoável espírito de interdependência norteia as relações EUA/Rússia e EUA/ China. Tal distensão culminou com a recente recepção de Hu Jintao, presidente da China Popular, em janeiro de 2011, a Washington. Neste visita Obama, com realismo e resignação, aceitou o “mantra” de Beijing: a China hoje representa a inédita ascensão pacífica de uma grande potência.
Nova Guerra fria?
Historicamente a ascensão e queda das grandes potências – para citar o ótimo título de Paul Kennedy – foi acompanhada de guerras e conflitos. Foi assim com a Alemanha e Japão no século XX. A China, desde as grandes reformas de Deng Shiao-ping, insiste que a trajetória chinesa em direção ao primado mundial será inédita, marcada pela manutenção da ordem e da paz mundial.
Tal afirmação, aceita e repatida por Obama em janeiro de 2011 no encontro dos dois presidentes, desmente inúmeros analistas – no mais “viúvas” da época da Guerra Fria - que vaticinam uma nova Guerra Fria, desta feita entre os EUA e a China Popular. A Guerra Fria, do ponto de vista histórico, foi um complexo sistema de rivalidades militares, políticas, econômicas e intelectuais entre duas potências em torno de uma utopia de futuro.
Entendida assim, a Guerra Fria é um fato do passado e com tal complexidade jamais se repetirá. Teremos, em verdade, a repetição de “rivalidades internacionais”, como já tivemos, por exemplo, a rivalidade anglo-francesa entre 1680-1815 ou Nipo-americana, entre 1922-1945. Mas, rivalidades não formam Guerra Fria, onde a disputa de supremacia de sistemas sociais e ideológicos era a tôncia maior. Hoje, até a China emula o capitalismo. É infelizmente buscamos uma utopia – Cazuza diria, uma ideologia – para podermos viver e lutar em torno dela.
Na Europa e nos Estados Unidos os movimentos conservadores – do ponto de vista social e político – avançaram imensamente e mesmo movimentos de ressurgência dos fascismos tomaram fôlego em vários países. Mais do que nunca falta uma utopia.
Novos e velhos conflitos
A cooperação entre as grandes potências – EUA – e as novas potências emergentes – China, Índia, Rússia -, a conformidade de um papel de coadjuvante para velhas potências – França, Inglaterra – desenharia uma nova arquitetura das relações internacionais. E com isso uma nova natureza dos conflitos internacionais.
A natureza dos novos conflitos – longe de uma nova ordem mundial pacífica e baseada em negociações internacionais conforme se esperava ao fim da Primeira Guerra do Iraque (1991) – é seu caráter assimétrico (o conflito entre fortes e fracos, no mais das vezes o fraco organizado em forma de Estado-rede em vez de Estado-Nação) ou mesmo dissimétrico (onde se enfrentam dois Estados-Nação, mas de capacidades altamente diferenciadas). Assim, a Administração Obama reafirmou a nova natureza dos conflitos internacionais: nebulosos, desiguais, dispersos e com uso amplo de recursos táticos altamente sofisticados, em especial o recurso a uma ampla panóplia antimecanização (visando anular o poder tecnológico do adversário).
Não podemos ainda esquecer, o retorno em força dos conflitos tipicamente convencionais, como foi a guerra entre a Rússia e a Geórgia em razão da Ossétia, conforme nos ensina Lucien Poirier. O fim do risco nuclear imediato – de Estado para Estado – abriu o caminho, claramente para o retorno das grandes operações militares de caráter clássico, sem as implicações decorrentes da possibilidade da “escalada nuclear”. Assim, o fim do “equilíbrio do terror”, a no balance condition, onde a possibilidade de golpear o adversário com força militar desequilibrada, buscando uma solução militar para as crises, é uma marca da nova ordem mundial, conforme o demonstram as guerras atuais (Iraque I e II, Líbano e Gaza, Geórgia).
Retorno do classicismo e a assimetria
É de extrema relevância, no atual momento dos conflitos da era pós-nuclear, um retorno ao classicismo nos estudos sobre as guerras e, fundamentalmente, na reconstrução da inteireza epistemológica das doutrinas bélicas. O interregno de 1945 ( ou 1947 ou 1949 ) até 1991 provocado pela Guerra Fria e a condição MAD (de mútua destruição assegurada ) foi suplantado. Da mesma forma a chamada “Inversão clauzewitzniana” também o foi. Isso quer dizer:
i. O risco de escalada nuclear dos conflitos é bastante baixa, o que libera as forças convencionais para um amplo uso, marcando o retorno da guerra convencional ou clássica como forma central de conflito entre os Estados-Nação;
ii. Aparição de formas avançadas, tecnologicamente sofisticadas, de guerra irregular, sob a forma de conflitos assimétricos, contrapondo o Estado-Nação a formas novas de Estado-rede, tais como o terrorismo, o narcotráfico, o crime transfronteiriço, etc...
Um texto revelador sobre o tema – e que foi durante muito tempo ignorado em função da fixação tecnicista da estratégia pós-Guerra Fria, é a análise magistral do general francês Lucien Poirier da Primeira Guerra do Golfo ( ou do Iraque, em 1991), quando afirma: "...a Guerra do Golfo restaurou a violência nas suas funções anteriores e marca uma transformação de peso na sua trajetória histórica" (Ver sobre isso: POIRIER, Lucien. La Guerre du Golfe dans La genealogie de La stratégie. In: Revue Stratégique, no. 51, 3º. e 4º. Trimestre, 1991).
Foi assim no caso da “Guerra dos 34 Dias” entre Israel e o Hizbollah, no sul do Líbano em 2006, paralisando as defesas estratégicas do Estado de Israel e causando fortes danos humanos e materiais a uma potência militar da qualidade de Israel. Neste conflito o Hizbollah utilizou largamente foguetes – Note bene: foguetes, não mísseis, Katyuscha, de fabricação iraniana, causando literalmente a evacuação de Haifa – maior porto de Israel e 121 baixas militares, com 628 feridos; além disso – o que o mais grave – os foguetes do Hizbollah causaram 43 baixas civis, e 4262 feridos ( em grau variado de gravidade ). O uso de uma arma primitiva, os erros da inteligência em prever esse tipo de conflito e as táticas errôneas do Tsahal foram, em verdade, um forte choque para os estrategistas israelenses. Mas, em 2009 este típico conflito assimétrico foi reafirmado em Gaza, no Iraque, e recrudesceu imensamente no Afeganistão. Também Somália e Iêmen são exemplos típicos da assimetria bélica atual.
Há um risco nuclear?
O risco nuclear, por sua vez, foi empurrado para a borda do sistema dos Estados-Nação. Durante as décadas passadas o pensamento estratégico ocupou-se em “pensar o impensável”: como sobreviver, e se possível, vencer num conflito termonuclear total – este foi, por exemplo, o papel do estrategista norte-americano Herman Khan. Superada tal condição imediata, com a aceitação tácita e diplomática das grandes potências atômicas da negociação e do compromisso cooperante, o risco atômico tornou-se marginal. Trata-se, no momento, de controlar dois desenvolvimentos da possibilidade de uso do atômico (e do químio-biológico) enquanto armas:
i. De um lado, a posse de tais armas pelo Estado-rede, que por suas características próprias não é suscetível a dissuasão;
ii. De outro lado, impedir o acesso de Estados-párias (the rogue states) a tal possibilidade, limitando o clube dos possuidores de armas de destruição de massas a um número restrito de Estados convertidos à lógica da responsabilidade westfaliana.
Devemos, assim, pensar as condições de conflito e crise da Nova Ordem Mundial a partir das premissas teóricas acima expostas, abrindo caminho para a análise dos mais importantes dossiês críticos atuais e cujo desenrolar será a base das relações internacionais em 2011 (continua).
Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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