sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Cine Belas Artes: luta ou saudades do futuro

Texto Reproduzido do sítio www.vermelho.org.br

Em "A Cidade Invisível", Ítalo Calvino descreve a memória das cidades e a importância da paisagem urbana (re)conhecida por seus habitantes. As ruas, becos e postes familiares — e como objetos de memória integrados à vida das sociedades locais.

Por Silvio Tendler*, especial para o Vermelho**

Uma concepção e uma vivência bem distintas. Na minha cidade, o Rio de Janeiro, assisti ao massacre de minha memória de cinéfilo. A noção de progresso, submetida à força do capital, sempre fala mais alto e o valor de um prédio mede-se mais pela taxa dos impostos urbanos do que pelas lembranças que traz do seu uso.

Meus cinemas de infância e juventude em Copacabana — Metro, Art-Palácio, Copacabana, Caruso — viraram loja de departamentos, sapataria, academia de ginástica e banco, respectivamente. O Alvorada sumiu na poeira da cidade. Outros usos tiveram o Ricamar, que transformou-se em centro cultural da prefeitura, e o Riviera, que virou boate gay.

O Rian, vitima de um incêndio suspeito tornou-se um mega hotel. Do cinema, ficou a imagem do público dançando rock durante as sessões em que era projetado "Balanço das Horas". Os jovens da "geração da Lambreta", da "Juventude Transviada", iam terminar a festa nas areias de Copacabana embalados pela música de Bill Halley e seus cometas. As gatinhas dos anos '50 hoje passeiam com seus netinhos pela praia e não se reconhecem no portentoso hotel. Apenas a lembrança de uma juventude bem vivida.

Das minhas memórias de cineasta, as perdas mais dolorosas foram o Caruso, no Rio de Janeiro, onde lancei "Os Anos JK" e batemos em bilheteria "Mulher nota Dez" (com a Bo Derek).

E agora me entristece a notícia que o cine Belas Artes, em São Paulo, vai virar "outra coisa". Os herdeiros do falecido dono do prédio querem retomá-lo.

Me lembro daqueles dias também ali, das filas virando curva na esquina, do público aplaudindo de pé, primeiro "Os Anos JK", em seguida "Jango", filmes que contavam a saga da luta por democracia. Havia uma cumplicidade entre cinema e história, espectadores e cidadãos. Era tudo a mesma coisa.

Os amigos telefonavam de São Paulo — não havia internet, nem correios eletrônicos ou e-mails — e contavam emocionados as notícias dos filmes aplaudidos de pé no final da sessão. De um tal político que foi assistir, se reconheceu na tela e saiu emocionado, ou de tal outro que saiu indignado com a "parcialidade" da obra. A última sessão que participei como cineasta foi ano passado, em 2010, com "Utopia e Barbárie", promovida por defensores públicos.

Significativamente, o filme é a minha tentativa de contar um pouco a história das nossas lutas históricas.

O cine Belas Artes parece que vai acabar, os jornais trazem notícias que sugerem um fato consumado. Dão conta da indiferença do prefeito e dos cidadãos diante do ocaso de um dos últimos cinemas de rua (que faz do espetáculo algo bem diferente do "cinema de shopping").

Entretanto, como um bom e teimoso sonhador, desses que, com Thiago de Mello, pretendem ainda e sempre cavalgar os sonhos, insisto em me perguntar:

Devemos assistir, nostálgicos, à destruição do sonho futuro de um mundo mais humano para a cidade e para as nossas vidas? Não cabe aí um pensamento de resistência?

Numa ação que, plenamente possível, repousa nas organizações sociais de uma cidade que fermenta e transpira, por mais frios que sejam os gestores públicos, no calor de suas vespertinas ou notívagas agitações culturais?

Na possibilidade de uma ação que movimentaria a vida cultural daquela que já foi mais que jocosamente a paulicéia desvairada?

Podemos acreditar?

*Silvio Tendler, cineasta, diretor de “Os Anos JK”, “Jango” e “Utopia & Barbárie”, entre outros documentários.

** Colaborou Luiz Carlos Antero.

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