quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

“O Brasil pode fazer mais pelos direitos humanos no mundo”, diz advogado da Human Rights Watch

Texto reproduzido do sítio www.operamundi.com

Chile, Chade, Haiti, China, Estados Unidos. Onde há governos acusados de cometer violações de direitos humanos, pode ter certeza de que Reed Brody estará por perto. Há mais de 25 anos, o advogado norte-americano trabalha para que violações não permaneçam impunes e para que a justiça internacional não enfraqueça em meio a jogos políticos. Advogado e porta-voz da HRW (Human Rights Watch), a maior organização de direitos humanos do mundo, Reed vive atualmente em Bruxelas, na Bélgica, onde ajuda a convencer líderes europeus a se comprometer mais com causas que vão da libertação de presos de Guantánamo ao apoio a Liu Xiaobo, dissidente chinês que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2010.

Antes de ingressar na HRW, Reed liderou equipes da ONU especializadas em investigar massacres na República Democrática do Congo e monitar a situação dos direitos humanos em El Salvador.

Reprodução

Para Reed, vinte anos depois as vítimas do Chade estão em uma situação ainda mais complicada

Entre suas campanhas mais longevas e complexas, está a tentativa de julgar Hissène Habré, ex-presidente do Chade, país paupérrimo da África central. Habré comandou a nação de 1982 a 1990, e durante seu governo estima-se que cerca de 40 mil pessoas tenham sido assassinadas por sua polícia secreta. Ao ser derrubado por um golpe, Habré se refugiou no Senegal, onde aguarda julgamento, desde que um grupo de vítimas chadeanas decidiu se unir e buscar justiça, em ação inédita no continente. A iniciativa contava com o auxílio de Reed Brody, que iniciou um movimento de pressão internacional, que chegou  a culminar com um parecer da União Africana determinando que o Senegal deve julgar o ex-presidente, apesar de os crimes terem sido cometidos além de suas fronteiras. “Foi um grande passo para a justiça internacional, mas se trata de um processo lento. Ainda vai demorar bastante para que se chegue a um veredito”, diz Brody, por telefone, de Bruxelas.

Além das vítimas do Chade, o advogado tem se empenhado em denunciar a conduta norte-america na guerra contra o terror. Para isso, não mede esforços: produz relatórios sobre abusos do governo de seu país, faz lobby com diplomatas europeus, escreve artigos nos principais jornais do planeta sobre o tema.

Em entrevista ao Opera Mundi, Reed Brody falou não apenas sobre o caso Habré, mas Guantánamo, Wikileaks e o polêmico mandado de prisão emitido contra o presidente do Sudão, Omar Al-Bashir, pelo Tribunal Penal Internacional. Para ele, a diplomacia brasileira, fortalecida após oito anos de governo Lula, poderia fazer muito mais pelos direitos humanos em outros países. 

Como está o andamento do caso contra Hissène Habre? Quais as maiores dificuldades de um processo de nível internacional como esse?

O caso Habré é uma verdadeira odisseia. Já se vão 20 anos que o ditador saiu do Chade após a queda de seu governo. Lá se vão mais de dez anos desde que foi acusado por crimes contra seu povo pela primeira vez. O caso envolve toda uma questão de vontade política da União Africana e do Senegal, para onde ele fugiu e se encontra atualmente. Mas o caso não parou. Em 24 de novembro, por exemplo, houve uma reunião de países doadores, que contribuem para financiar o julgamento, e todos concordaram em continuar suprindo as demandas orçamentárias do Senegal para que o processo prossiga de forma mais rápida. O que é interessante é que esse caso do Habré movimentou a justiça internacional. Gerou litígios até na CIJ (Corte Internacional de Justiça), onde a Bélgica denunciou o Senegal por faltar com sua obrigação de julgar Habré e se negar a extraditá-lo para aquele país [cinco anos atrás, a Bélgica pediu que o Senegal julgasse Habré de uma vez ou que o extraditasse, pois a justiça belga estava pronta para fazer isso sob o princípio da jurisdição universal]. Na CIJ, o juíz brasileiro Antônio Augusto Cansado Trindade, escreveu um texto a respeito do caso Habré sobre o qual reflito muito: “Há um espaço grande entre o tempo dos seres humanos e o tempo da justiça. O passar do tempo sem justiça é doloroso. As vítimas sobreviventes das atrocidades do regime de Habré continuam esperando. Esperança é a última que morre”. Isso resume um pouco essa odisseia das vítimas.

Como estão as vítimas no Chade depois de tantos anos de espera?

Vinte anos depois, a situação delas é complicada. As vítimas estão mais frágeis, mais velhas. Temos conseguido vitórias importantes, só que em etapas. Quando a gente pensa ou menciona o nome de Hissene Habré, por exemplo, o que vem à cabeça é a figura de um ditador cruel. Se você procurar o nome dele no Google, só achará termos como “ditador”, “sanguinário” e “atrocidades”. Isso foi uma conquista da luta das vítimas. Além disso, o caso virou tema de três filmes, Habré foi detido em prisão domiciliar e o julgamento serve de aviso a outros ditadores. Ajudou a inspirar vítimas em toda a África a reclamar seus direitos. Isso representa uma série de vitórias, mas, claro, a vitória final ainda pode demorar muito.

Você acredita que a justiça internacional, incluindo não só o caso Habré, mas iniciativas como o Tribunal Internacional de Ruanda e o caso contra o ex-presidente da Libéria Charles Taylor, contribuiu de fato para uma melhora na situação dos direitos humanos no continente africano? Acho que se cumpriu um grande trabalho de mudar a lógica de como as pessoas olham para casos de atrocidades contra os direitos humanos na África. Houve um longo processo de fortalecimento da sociedade civil, que agora sabe que pode reclamar justiça. É como eu disse certa vez sobre o caso contra Augusto Pinochet, do Chile: processos assim são uma chamada para que ditadores do mundo todo se liguem. O caso Pinochet espalhou a esperança entre vítimas e grupos de direitos humanos, que passaram a impor limites ao exercício de poder de seus líderes. As mentalidades vão mudando, não necessariamente amanhã, claro, mas a médio e longo prazo.

Mas a situação melhorou na prática? Ainda estamos na infância da justiça internacional. No mundo hoje, sobretudo quando nos referimos à África, ainda é complicado falar de uma melhora, pois há muitos países onde não se respeitam os direitos humanos. É preciso um longo trabalho para mudar toda essa lógica e mentalidade.

Muitos especialistas disseram que o mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional contra o presidente do Sudão, Omar Al Bashir, apenas enfraquece a luta pela justiça internacional, já que as chances de ele ser julgado são pequenas. Qual é sua opinião? Tudo depende de vontade política, e é possível ajudar a fortalecê-la. Essa movimentação contra Al Bashir é um teste importante para a comunidade internacional. Não estou tão certo de que ele não será julgado um dia. Pode não ser amanhã ou daqui a dois anos, mas esses ¬¬¬ são imprescritíveis.

O mandado de busca contra Al Bashir pode aumentar a violência no Sudão? Um possível crescimento da violência no país não é culpa do mandado de busca, mas sim de Al Bashir e do governo sudanês. Isso precisa ficar claro: as consequências nefastas provocadas pelo governo do Sudão são responsabilidade dele, não do Tribunal Penal Internacional. Ao promover esse tipo de chantagem, Al Bashir revela ainda mais sua despreocupação pelo bem estar de seu próprio povo. Expor o povo sudanês a crueldades, a dificuldades inimagináveis e a tanto sofrimento por causa de um mandado de busca é uma amostra a mais da responsabilidade do governo sudanês.

Sobre a América Latina, você acha que a região progrediu em relação aos direitos humanos ? A América Latina é hoje uma das regiões mais respeitosas aos direitos humanos no mundo. Com exceção da Colômbia, Cuba e Haiti, já não podemos falar de grandes violações sendo cometidas no continente. Ainda existem, claro, questões que precisam ser avançadas, como os direitos econômicos, o direitos dos presos, a violência urbana, os direitos das mulheres. Mas se tratam de lutas típicas de países mais democráticos. Os direitos mínimos já foram conseguidos. A região é estável, e as questões da dignidade humana são de outro nível. Claro que há problemas ligados à pobreza e exclusão, mas são de outra natureza.

O mundo inteiro está comentando o vazamento de documentos do Wikileaks. De que forma a divulgação de relatórios diplomáticos contribui para as relações internacionais?

Estamos aprendendo muito sobre vários assuntos com esse vazamento. Envolve muita informação de enorme importância e grande interesse público. Mostra que a internet é uma grande força a favor da transparência. Nas últimas semanas, no entanto, nós, da Human Rights Watch, temos percebido que vários diplomatas com os quais trabalhamos já estão tomando mais cuidado e se revelam menos dispostos a nos expor fatos. Organizações como a nossa se envolvem muito na diplomacia como parte do trabalho em direitos humanos. O vazamento do Wikileaks pode tornar as coisas ainda mais difíceis para organizações como a nossa, já que diplomatas estão menos propensos a compartilhar informações conosco. Mas essa é uma história de vários lados. O público, com o vazamento, pela primeira vez está aprendendo sobre como a política internacional é feita. Acredito fortemente que os governos se comportam melhor em relação aos direitos humanos quando sabem que estão sendo vigiados pelo público.

Vocês, da Human Rights Watch, estão acompanhando o caso Wikileaks para ver se não ocorrem violações de direitos humanos em meio a toda essa confusão?

A Human Rights Watch tem estado em contato com representantes do Wikileaks para pedir cuidado em nome de ativistas que possam eventualmente ser identificados nesses documentos. Há vários deles que acabam indo à embaixada americana falar com diplomatas sobre a situação de seu país, e seria muito ruim se eles fossem prejudicados de alguma forma. O pessoal do Wikileaks nos disse que esse tipo de preocupação têm sido atendida. Não temos até agora nenhuma informação de que a segurança de ativistas tenha sido colocada em risco por causa do Wikileaks.

O Wikileaks vazou um documento em que o governo brasileiro aparece se negando a aceitar eventuais presos de Guantánamo. Não foi apenas o Brasil que teve esse tipo de atitude. O que fazer com esses presos?

Existem vários problemas envolvidos nesse caso. Entre os presos, há um grupo que já foi liberado pela administração do governo do norte-americano George W. Bush e que os Estados Unidos querem mandar para outros países. Infelizmente a opinião pública norte-americana não está preparada para aceitar essas pessoas dentro de suas fronteiras. Eu estou pessoalmente envolvido nas tentativas, aqui na Europa, de encontrar países que os aceitem e os integrem em sua sociedade. Isso tem sido um trabalho difícil. Vimos alguns documentos do Wikileaks sobre o assunto, em que países como França dizem que não se sentem seguros em receber os ex-detentos de Guantánamo. A Europa tem, no entanto, um especial compromisso com esse tema porque foi muito cúmplice dos Estados Unidos ao, por exemplo, enviar policiais a Guantánamo para participar de interrogatórios. Essa questão vai além. Uma boa parte das pessoas detidas lá ainda não foi liberada pelo governo. E a administração Obama está propondo o mesmo que a administração Bush propunha, ou seja, julgamentos realizados em comissões militares. Em outros casos, o governo está com a ideia de prisão prolongada por tempo indeterminado. Isso não está de acordo com o direito internacional. A ideia, na prática, se resume a transferir os presos de Guantánamo para penitenciárias em outros Estados dos EUA. Ou seja, apenas se transfere de um Guantánamo para outro.

O Brasil vem buscando se tornar um ator internacional de maior relevância. Para isso, aproximou-se do Irã, da Líbia e Cuba, por exemplo. Ao tentar crescer diplomaticamente, o Brasil perde a chance de contribuir para os avanços dos direitos humanos no mundo?

Acho muito positivo que um país como o Brasil crie seus próprios canais de comunicação com outros governos. Isso não exclui a possibilidade e a necessidade de o Brasil também estar ao lado do povo desses países. A participação do Brasil é muito bem-vinda, mas isso traz fortes responsabilidades e obrigações. O país possui uma sólida credibilidade, sobretudo sob o comando de um presidente como o Lula, que tem um engajamento pessoal de longa data a favor dos marginalizados. Eu estava em Syrte, na Líbia, quando Lula visitou o presidente Muamar Kadafi. Vi a admiração que tanto o povo quanto o governo da Líbia têm por ele. Tudo isso dá ao Lula e ao Brasil a oportunidade de influenciar pelo bem o rumo dos acontecimentos. O diálogo entre países amigos pode ser acompanhado com franqueza, para que a verdade seja dita. Quando vemos o Lula desprestigiar os grevistas de fome de Cuba ou os manifestantes no Irã, é um contraste com a história pessoal dele e também com a história do povo brasileiro, que teve de lutar para reconquistar sua democracia. Não ajudar outros povos é quase uma negação, um insulto para a própria trajetória do Brasil, onde se custou tanto para recuperar a democracia.

Qual sua avaliação da adminstração Obama em relação aos direitos humanos? Por um lado, é fato que os Estados Unidos já não têm uma política oficial de torturar pessoas. Nesse sentido, houve uma melhora de uma administração para outra. Mas isso só não basta. Até agora Obama falou bastante, mas não concretizou tanto quanto poderia. Nas questões mais importantes, que são as políticas contra terrorismo, é verdade que Obama ordenou a CIA a respeitar as regras oficiais de interrogatório e fechou as prisões secretas onde se cometiam torturas. Porém, não aceitou mandar investigar aqueles que arquitetaram essa política de tortura. Obama quer fechar Guantánamo fisicamente, mas não o que Guantánamo simboliza. É preciso colocar um fim à manutenção de pessoas detidas por longo tempo sem direito a julgamento. Não basta apenas falar que não vai mais torturar, tem de mostrar em seus atos que a tortura não é mais uma escolha política.

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