sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Crítica como método

Normalmente falamos de crítica num sentido leigo como censura ou julgamento. Contudo, a crítica tem uma origem mais antiga e filosófica, será ela o elemento que dará continuidade a análise genealógica que me propus a fazer tempos atrás. Iniciamos o processo genealógico, ou seja, de buscar a origem do conhecimento por Nietzsche. O esforço genealógico que realizamos é histórico, embora não historiográfico.
Enquanto Nietzsche estava preocupado com a origem do conhecimento Kant preocupou-se com sua estrutura. Em sua análise acerca do desenvolvimento da razão seu objetivo era estabelecer um método seguro para compreender como a razão estrutura seus conceitos, frise-se, não quando ou o por quê, mas como. Para tanto ele empreendeu a tarefa de criar o método crítico. O método crítico tem por objetivo, no dizer de Kant, criar um tribunal da razão, ou seja, um meio seguro em que se possa estabelecer os limites e a extensão de todo pensamento.
A crítica é, neste sentido, um esforço para retornar ao vigor originário do pensamento, a busca do conhecimento de si. Kant acreditava poder descobrir, se se mantivesse fiel ao método crítico às leis imutáveis que estruturam o pensar. Para tanto deveria se manter fiel a só incluir como princípios elementos que pudessem ser demonstrados sem que houvesse contradição com a razão e que fossem absolutamente necessários.
A implicação direta disto é que não poderá admitir qualquer experiência transcendente por que estas não podem ser comprovadas pela própria razão sem que os princípios da crítica sejam violados. Ora, a manutenção do princípio da unidade da razão e da absoluta necessidade para admissão de qualquer estrutura ou princípio serve duplamente ao propósito kantiano a uma por que garante limites estreitos para o que é possível conhecer e também por que garante a inexorabilidade do princípio estabelecido.
O método crítico, portanto, rompe com o modo escolástico, tradicional à época, de analisar a relação do homem com o mundo a partir da essência das coisas. A crítica empreende uma inversão neste pensar e passa a analisar a relação do homem com o mundo a partir do que é lícito ao homem, por meio da razão, conhecer. De tal sorte que a essência, fundamento de toda experiência transcendente, perde espaço ante o fenômeno, ou seja, aparecer de todo ente.
É por este método que Kant conclui que se nos é possível conhecer deve haver algo em nossa razão que permite tal conhecimento. Tais são as estruturas básicas da razão, estas deverão estar em toda possibilidade de apreensão da realidade, ou seja, todos os conceitos que formamos não poderão prescindir, mesmo que de modo confuso, delas. Trata-se do tempo e do espaço. Há, neste sentido, uma limitação muito clara do conhecimento ao conhecimento sensível.
Todo conhecer é, neste sentido, um perceber. Assim, se é verdade que nosso conhecimento se estrutura a partir da razão e que esta deve manter a unidade de seus princípios deverá ser verdadeiro também que tudo que pode ser conhecido se encontra desde o início em nossa razão sob a forma de tempo e espaço. Será verdadeiro, ainda, que tais conhecimentos deverão estar em consonância com a unidade de nossa razão.
Perdemos então todo acesso privilegiado, que a escolástica atribuia ao homem, ao mundo “verdadeiro”. Tudo que nos é possível conhecer a partir da crítica é aquilo que aparece à nossa experiência sensível. Tal esforço foi, de fato, um grande avanço no desenvolvimento da compreensão de nossa capacidade de nos relacionar com o mundo.
Ocorre que, no meu entender, Kant não se manteve fiel ao seu próprio método, pois embora não tenha admitido nosso acesso ao mundo “verdadeiro” ele presumiu que deveria existir a coisa em si. Esta manteria dentro dos limites do real a relação entre possibilidades infinitas de desenvolvimento humano e suas limitações práticas, históricas, das quais ele não podia dar conta.
Emblemática é a afirmação que Nietzsche faz acerca da crítica no “Crepúsculo dos Ídolos”: “O mundo verdadeiro - inatingível? De qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também desconhecido. Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de desconhecido poderia nos obrigar?...
Por que somente em Nietzsche se estabelece o mundo como a relação que o homem desenvolve a partir da necessidade histórica, ou seja, somente ali é que o mundo “verdadeiro torna-se fábula é que iniciei o esforço genealógico a partir de Nietzsche. Neste tudo que existe é o fenômeno, ou seja, o aparecer das coisas, melhor dizendo tudo que existe é a relação com o mundo posto que não existe mais coisa em si. Isto só é possível se enfrentarmos historicamente o desenvolvimento do conceito enquanto mecanismo de interlocução do homem com a realidade. Este analisar histórico também não é, de modo algum historiográfico, mas tem o mérito de impôr uma origem para o processo de formação dos conceitos, ou seja, para que o entendimento pudesse se formar.
Ora, os esforços genealógicos, no meu entender, são continuativos e a história mostra como embora historiograficamente Nietzsche seja posterior à Kant, este açodou-se em uma tarefa sem perceber que para que a crítica pudesse ser completa, ou seja, pudesse estabelecer os limites exatos do uso da razão deveria antes descobrir como esta razão chegou a estabelecer-se em sua relação com o mundo.
Neste sentido, a crítica kantiana a razão ficou inacabada por que despojou-se de todo sentido histórico do surgimento da razão que é condicionante do próprio modo como nossas relações intuitivas, tempo e espaço, se conectam com o mundo. Por isto, somente em Nietzsche é que pudemos afirmar que saber é compreender àquilo que nos convém, num sentido histórico, ou seja, que embora nossa noções intuitivas sejam intuitivas são mutuamente influenciadas pela experiência que temos do mundo.
Por fim, apesar da censura que estabelecemos ao método crítico de Kant ele tem como mérito permitir que nos aproximemos de modo muito particular da realidade e, embora aqui a discussão tenha sido sobre sua aplicação primeira, seu uso foi popularizado como meio para combater todo tipo de engano provindo da escolástica e da política.

Um comentário:

  1. Excelente o artigo. A razão kantiana não estabelece os fundamento de sua historicidade, que Nietzsche problematiza ao questionar a relação do sujeito do conhecimento com o objeto que ele constroi em sentido historicizante. Esta é uma abertura para se pensar a não existência de uma razão universal e inequívoca do conhecimento, na medida que a razão implicada em discursi é também historicamente e culturalmente condicionada.

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