O ponto de inflexão deste novo artigo ainda é o personagem do livro “Recordação da Casa dos Mortos”. E, antes de tudo devo realizar uma errata sobre o texto anterior, revendo as palavras mas não seu sentido. Disse que este livro foi publicado antes das “Memórias do Subsolo” notando, ainda, o caráter denso da psicologia de Pietrovich ocorre que este livro foi publicado depois das Memórias.
Isto de modo algum invalida o raciocínio. Pietrovich é de fato mais denso, num sentido psicológico, humanista (se é que isto se pode encontrar em Dostoiévski). Seu viés humanizado somente assume a função de tipo ideal num olhar atento enquanto o homem do subsolo é um tipo ideal ao paroxismo (fato que comentarei em outro texto)
A errata não é o motivo deste texto, que ao contrário do outro versará sobre um trecho específico do livro, mas o início do trecho a confirma na afirmação “preocupava-me muito esta questão tão ampla das dores e ao que podiam ser comparadas. Não sei qual o motivo desta minha curiosidade. Repito eu ficava perplexo, fora de mim.”
O trecho realiza a transição entre a inflexão do personagem e a sua ambivalência que estará em jogo neste texto. O trecho em questão é de interesse por duas razões, uma confirmar o caráter ambivalente do personagem, ou seja, sua inconsciência a cerca de determinados fatos, bem como ressaltar a questão central da humanidade que se coloca a partir das dores.
Neste momento quero ressaltar o rompimento com uma tradição, humanista, pela afirmação da inconsciência e a consequente não identificação da linguagem com o ser estruturante do real, por outras palavras, Pietrovich reconhece, em sua inquietude, a diferença entre o real e o que efetivamente pode ser dito. Assim, reconhece também a primazia mas não a exclusividade da linguagem como forma de estruturar o real.
À continuação refere-se à condição que desumaniza já claramente no retraimento daquilo que é o aspecto primário da estruturação do real. Então, vê-se o paradoxo, reconhece na condição humana a possibilidade de estruturar o real de outras formas que não a linguagem mas reconhece nesta condição humana um caráter desumanizante por não ser capaz de representar a representação do objeto, ou seja, descrever sua percepção. Neste sentido, “o castigo da flagelação , tão usado entre nós é a mais severa de todas as existentes. (…) Atacam mais os nervos, abalam o organismo todo, ferem de maneira insuportável.”
Atento a sua sociedade não deixa passar o caráter dialético do pathos que enuncia em relação ao preso e dialeticamente repara como a dominação não permite também a manutenção da condição humana e isto com ainda mais vivacidade. Reparem “Não sei se acaso ainda existem, mas outrora havia homens que só em supliciar suas vítimas experimentavam júbilo (…) Sangue e poder estonteiam, em geral desenvolvem a brutalidade e a perversão, o espírito e p sentimento se tornam pasto de prazeres esdrúxulos.”
A condição de homem é colocada em jogo numa dupla prisão a da perversão e da dor. Nestes casos o que se experimenta é, em sentido forte a morte, a morte do ser humano que por sua natureza, a contrario senso, é livre. Leia-se “A volta ao estado de homem e cidadão se torna impossível não havendo mais consciência nem arrependimento, e sim voracidade e delícia.”
Evidencia o caráter ambivalente de personagem narrador no fim desta digressão completamente teórica reafirmando o caráter de seu tempo na contradição direta com sua primeira fala, onde afirma não saber se existe ainda o júbilo no dominar. Como veremos sua contradição é clara e proposital, paroxística, visa atenuar a condição que é o fundo de todas as dores e perversões que até aqui foram faladas, sua sutileza estilística deixa para o fim a revelação da práxis de seu tempo e do próprio caráter geral da análise que até agora fizera. Veja-se “Todo industrial sente uma dose de prazer pelo fato de os seus operários e respectivas famílias dependerem totalmente dele”
Por fim, remete à ação humana e sua contradição entre o recebido, aquilo que lhe foi deixado no leite materno, e o que pode ser feito, a empreitada da libertação. Assim, afirma a crença num ressurgir não de mortos concupiscentes mas de homens e cidadãos.
Alieksandr Pietrovich é o espírito do tempo em que a dominação nos transformou em mortos e sua ambivalência revela a participação no que é, no que se retrai e no que não se sabe. Isto demonstra-se pelo salto filosófico que realizou entre a digressão sobre a tirania e a realidade autocrática de seu tempo, bem como em direção à possibilidade de transformação da realidade, o novo.
Seu cárater culturalmente restrito (espacial(, realiza o próprio ser do tempo em que vive constantemente atualizado. “As gerações não se esquecem duma hora para outra o que herdaram não se desprendem com facilidade do que recebem no sangue; daquilo que sugaram com o leite materno, não existem transformações súbitas. Seus erros, seus pecados originais, não basta reconhecê-los. Cumpre erradicá-los também, e não é tarefa fácil.”
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